terça-feira, 16 de abril de 2024

Conexões & Rupturas: pensando modelos de inovação

 


Os avanços tecnológicos se impõem num movimento que sempre os leva adiante de forma sempre crescente (cf. Hans Jonas. O princípio Responsabilidade).


Muitas vezes num ritmo cada vez mais acelerado.


Tudo isso alimenta uma produção de conhecimento impossível de ser assimilada, em proporções cada vez maiores. A partir de 1945, a humanidade alcança níveis drásticos de inovações. Zygmunt Balman, sociólogo polonês, alerta para a crescente dicotomia entre a avalanche de informações, de um lado, e a carência de conhecimentos sólidos e confiáveis. As consequências são preocupantes.


Isso nos leva também a um momento em que o conceito de inovação passa a ser banalizado, como por exemplo, nas declarações do CEO da Ocean Gate, destacadas após o caso da implosão do submersível Titan em 2023.


O que nos leva à pergunta: o que é mesmo inovação? O que significa quebrar regras? Qual a diferença entre invenção e inovação na perspectiva de ser "aceita amplamente"? 


Vemos como as invenções podem ser consideradas "meros objetos" criados pela criatividade humana. Ou descobertas cientificas podem ser desconectadas da rede de relações que lhes dá a devida importância em nossa sociedade. Neste sentido, embora a invenção possa ser fruto da acumulação de conhecimentos, as inovações, por sua vez, são ligadas também a forças sociais, a necessidades econômicas, a decisões políticas, a pressões públicas e a expectativas da sociedade que influenciam a direção da mudança tecnológica. São exemplos a máquina à vapor de Heron de Alexandria (séc. I d.C.) e o fungo de Alexander Fleming de 1935. Apenas depois de inúmeras conexões, em ambas os casos, surgem as inovações da máquina à vapor e a penicilina,


As inovações também não podem ser dissociadas da forma pela qual são produzidas. Por isso também não são meros objetos, mas objetos conectados a um processo de construção. O Ford modelo T, por exemplo, seria um sucesso se não tivesse sido produzido em uma moderna linha de produção, capaz de baratear seu preço? A GM teria sobrepujado a Ford se não tivesse reorganizado sua produção em departamentos dedicados a cada produto? Os carros da Toyota conseguiriam concorrer com os veículos americanos sem as inovações de logística e produção? Portanto inovar é promover conexões, 


Para sermos coerentes, tentaremos compreender a inovação sem recorrer a inúmeros conceitos, mas nos deteremos apenas a dois princípios já presentes no discurso do CEO da Ocean Gate: conexões e rupturas. Se tivermos sucesso, compreenderemos onde houve seu grande erro.

O primeiro conceito surge com a obra do sociólogo francês Gabriel Tarde, responsável por pensar uma sociologia baseada na interação entre indivíduos, onde cada um é sempre em relações a outros, ao que ele denominou "interpsicologia". Nesse sentido, hábitos de consumo, por exemplo, sempre recebem influência de um indivíduo sobre outro, numa rede interminável de conexões. Indivíduos imitam assim outros indivíduos, tal como vemos hoje através do conceito de influencer. Para Tarde, isso explica a difusão de inovações em sociedade. Mas além disso, as próprias inovações são imitações sobre imitações anteriores, sempre sendo adaptadas, otimizadas até se adequarem aos anseios do consumidor.  


As observações de Tarde acabaram se confirmando décadas depois. Hoje a interpsicologia do autor francês é estudada através do comportamento em redes sociais eletrônicas e possuem inúmeras aplicações, sendo criada uma abordagem rigorosa para a compreensão do funcionamento das redes.


Os conceitos atuais para o estudo de redes são capazes de descrever uma topologia a partir de seus nós, vínculos, diâmetros, densidade, clusterização etc., onde tudo parece conectado, mas segundo uma lógica mais compreensível em nossos dias.


Por outro lado, também temos uma ruptura radical em Schumpeter, onde a criação de novos mercados sequer é dependente das necessidades do cliente, ele pode ser educado para o consumo.


Ainda no âmbito das rupturas, vemos que a chamada inovação disruptiva, apesar do nome, não representaria uma ruptura tão radical quanto a de Schumpeter. Seu criador, Clayton Christensen  considera essencial nessa modalidade o atendimento a clientes de um mercado periférico, os quais não são atendidos ou são muito pouco atendidos. O exemplo perfeito seria a Southwest, companhia aérea que passou a oferecer voos bem mais em conta, customizando o atendimento. Invés de uma experiência requintada, cada passageiro poderia levar seu próprio lanche à bordo. Na contramão, a Aplle e o Uber não se enquadrariam nessa categoria, E a Kodak seria o caso de uma resistência à inovação.



Também cabe destacar que, apesar dos grandes avanços tecnológicos, a inovação continua dependendo sempre de pessoas. Quando elas são desconsideradas, as coisas simplesmente não funcionam, como demonstrou Elinor Ostrom, primeira mulher a ganhar um Nobel em economia.





Conforme vemos no gráfico de evolução do PIB da Noruega e da Finlândia, a economia norueguesa começa a decolar a partir da 1971, com a descoberta de seu primeiro poço de petróleo no mar do Norte.

Todavia, a Finlândia acompanha esse crescimento com a ajuda de uma outra descoberta: inovações educacionais. Essas inovações, acabam transformando a economia da Finlândia, baseada anteriormente na produção de celulose para exportação de papel, tornando esse país um polo de design e inovações tecnológicas.



Vemos aqui um resumo do modelo finlandês de educação, muito influenciado por educadores como Paulo Freire.


Vale destacar que, para fazer sua reforma educacional, a Finlândia precisou se opor radicalmente às tendências da época, que propunham uma rede educacional baseada na competição, enquanto o modelo finlandês passou a se basear em uma rede colaborativa. Isso nos coloca um ponto importante: a inovação não pode ser uma mera observação de tendências inovadoras. Essa observação tem sua importância, mas deve ser acompanhada de uma análise critica de quais agenciamentos essas tendências promovem, quais consequências estão em jogo, quais relações são fortalecidas ou enfraquecidas. Meramente acompanhar tendências sem uma avaliação crítica pode reduzir o profissional da inovação a alguém que apenas acompanha modas.

Portanto não há inovação sem pensamento crítico. Essa seria nossa resposta ao CEO da Ocean Gate. Seus conceitos não necessariamente estavam errados, mas os seus resultados foram desastrosos pela incapacidade de refletir sobre eles e fazer as escolhas certas. Nesse sentido, a análise crítica também é uma autocrítica. 

Além disso, na perspectiva do sucesso finlandês, com todo o conhecimento acumulado sobre redes sociais hoje, com todos os parâmetros para compreendermos a topologia de uma rede, é impensável não considerar uma analise mais cuidadosa sobre quais redes estamos ajudando a implementar ou não.


Por último apresento um exemplo de rede colaborativa utilizada pela Petrobras. No centro, apontando para o QR-Code podemos localizar o site da empresa onde encontramos os meios de se inscrever e participar dessa nossa rede de inovações.




quarta-feira, 7 de junho de 2017

Um carro chamado Direitos Humanos


Por Jorge Moraes

No Rio de Janeiro, em 2008, uma viatura da Polícia Militar perseguia um Fiat Stilo preto pelas ruas da Tijuca. Na mesma rua, uma advogada, voltando para casa com seus filhos num Fiat Palio Weekend cinza chumbo, sai do caminho dos bandidos e encosta seu carro para não se envolver na perseguição. Estranhamente a polícia para a viatura a poucos metros do Fiat da advogada, enquanto os bandidos fugiam livremente. Saem os dois policiais do veículo e disparam 27 tiros contra o carro errado. A mulher desesperada joga uma mochila com fraudas pela janela para que os policiais pudessem perceber que havia crianças no carro. Mas já era tarde demais, o mais velho, de três anos, após ser alvejado, foi levado para o hospital, não resistindo aos ferimentos, morreu no dia seguinte.

Na investigação, os policiais alegaram que os tiros foram disparados pelos bandidos, mas um vídeo de uma câmera de segurança desmentiu a versão da polícia. Os policiais de fato alvejaram o carro, matando o jovem passageiro.

O que aconteceu naquele dia não é algo incomum. Infelizmente ocorre com frequência no Rio de Janeiro. Em geral a polícia atira primeiro para averiguar depois. A grande maioria das vezes, contra jovens negros, de origem humilde, que habitam favelas. Mas, como de costume, a situação apenas chama a atenção quando atinge uma advogada em um bairro de classe média do Rio de Janeiro.

Isso fica claro quando observamos um outro exemplo mais recente, ocorrido em 2015. Um adolescente em uma comunidade de Honório Gurgel é abordado a tiros por policiais e acaba filmando sua própria morte com seu celular. Em defesa os policiais, que não perceberam a filmagem, plantam duas armas para recorrer ao auto de resistência. A importância de melhor avaliar essa prática se dá pelo crescimento vertiginoso de autos de resistência - 96,7% em relação a março de 2016. Destaca-se que caso não fosse a filmagem do celular, além de assassinado, o jovem também seria incriminado, aumentando essa infame estatistica.

Ao comparar as duas histórias, vemos um importante ponto em comum. Trata-se de uma disposição fatal da polícia carioca para, primeiro atirar, e depois averiguar. Obviamente as condições de treinamento, preparo e remuneração da polícia devem ter alguma influência nesses episódios. Mas gostaria de enfatizar não o papel da polícia, ou dos policiais, e sim o da opinião pública que, involuntariamente, acaba apoiando ambas as práticas. Ela frequentemente identifica os Direitos Humanos com o direito de bandidos, ou como um entrave para a atuação da polícia.

Diante das duas histórias, o público em geral não identifica a atuação da polícia no episódio da Tijuca como sendo um caso de violação de Direitos Humanos; mas identifica, de forma pejorativa, no segundo caso e identificaria ainda mais se o celular do jovem não estivesse gravando a ação da policial. No primeiro caso, segundo a opinião geral, seria um erro odioso da polícia despreparada. No segundo, uma mera exceção, um dano colateral da ação policial, pois a força policial deve continuar podendo agir de forma truculenta contra os marginais e que se danem os direitos humanos - afinal, se foi atingido tem alguma relação com a marginalidade. Nesse caso, o rito de prisão, acusação, julgamento e condenação deve mesmo poder ser comprimido em um único ato de execução sumária. Caso contrário a vida nas cidades seria insustentável com a criminalidade. Para essa reflexão distorcida, o cidadão médio tem Direitos e o cidadão jovem, negro, pobre e em contato com o crime teria Direitos Humanos, os quais precisam ser urgentemente revogados, em nome da ordem e do convívio pacífico em sociedade.

Vários erros estão contidos nessa reflexão distorcida, mas gostaria de destacar o mais gritante. Antes de mais nada, o movimento pelos Direitos Humanos não se reduz à defesa dos direitos de presos e suspeitos. É lícito dizer que "hoje a maior parte das organizações que advogam pelos direitos humanos estão preocupadas primordialmente com outras questões, como o racismo, a exclusão social, o trabalho infantil, a educação, o acesso à terra ou à moradia, o direito à saúde, a questão da desigualdade de gênero etc."

Mas além disso e acima de tudo é preciso destacar que a luta por direitos humanos diz respeito a qualquer ser humano, pelo simples fato de ser humano, tal como, essas duas histórias podem ilustrar. Elas servem para dizer que Direitos Humanos são como Fiats pretos com insulfilme. Qualquer um que esteja lá dentro faz jus a ele: branco, negro, bandido ou cidadão. Esses direitos servem para proteger as pessoas da arbitrariedade de serem sumariamente julgadas, condenadas e executadas por qualquer um que se julgue capaz de decidir sobre a vida de um ser humano sem nenhum constrangimento. Aqueles policiais inclusive poderiam estar diante do veículo correto, mas como eles poderiam saber se ali não estariam reféns inocentes juntos com os marginais?





 
Vídeo da câmera de segurança flagrando a ação dos policiais na Tijuca 


Fontes:

1 O Globo
2 Carta Capital
3 DHNET

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Como a diversidade pode impulsionar a inovação


Publicado em Harvard Business School  

Por: Sylvia Ann Hewlett, Melinda Marshall e Laura Sherbin


[...] uma nova pesquisa fornece evidências convincentes de que a diversidade desbloqueia a inovação e impulsiona o crescimento — uma conclusão que deve intensificar os esforços para assegurar que as camadas executivas não só abracem como encarnem o poder das diferenças.
Nesta pesquisa, que se baseia em uma pesquisa nacional representativa de 1.800 profissionais, 40 estudos de caso e numerosos grupos focais e entrevistas, que examinaram dois tipos de diversidade: inerentes e adquiridas. Diversidade inerente, envolvendo traços com os quais você nasce, tais como gênero, etnia e orientação sexual. Diversidade adquirida, envolvendo traços os quais você adquire com a experiência: trabalhar noutro país pode ajudá-lo a apreciar as diferenças culturais, por exemplo, enquanto a venda para os consumidores do sexo feminino pode dar-lhe experiência em gênero. Referimo-nos a empresas cujos líderes apresentam pelo menos três traços de diversidade inerentes e três adquiridos como portadores de diversidade bidimensional.

Ao correlacionar a diversidade na liderança com os resultados do mercado, conforme relatado pelos entrevistados, aprendemos que as empresas com diversidade 2-D superaram a inovação e o desempenho de outras empresas. Os funcionários dessas empresas são 45% mais propensos a relatar que a quota de mercado da sua empresa cresceu em relação ao ano anterior e 70% mais propensos a relatar que a empresa capturou um novo mercado.

[...]
 
No entanto, a maioria dos entrevistados - 78% - trabalham em empresas que não possuem a diversidade 2-D na liderança. Sem uma liderança diversificada, as mulheres são 20% menos propensas do que os homens brancos heterossexuais a ganhar aprovação para suas ideias; pessoas de cor são 24% menos propensas; e LGBTs são 21% menos propensos. Isto custa a suas empresas oportunidades de mercado cruciais, porque colaboradores com diversidade inerente entendem as necessidades não satisfeitas em mercados sub-alavancados. Descobrimos que, quando pelo menos um membro de uma equipe tem traços em comum com o usuário final, toda a equipe entenda melhor esse usuário. Uma equipe com um membro que compartilha a etnia de um cliente é 152% mais provável que entenda o cliente do que outra equipe.

A diversidade inerente é, no entanto, apenas a metade da equação. Os líderes também precisam da diversidade adquirida para estabelecer uma cultura em que todos os funcionários se sintam livres para contribuir com ideias. Temos encontrado seis comportamentos que desbloqueiam a inovação na gerência: garantir que todos sejam ouvidos; tornar seguro propor novas ideias; dar aos membros da equipe poder de decisão; partilhar crédito pelo sucesso; dar feedback embasado; e feedback à equipe de execução. Os líderes que dão a diversas vozes igual tempo de escuta são quase duas vezes mais propensos que os outros a desencadear insights de valor, e os empregados numa cultura “livre" são 3,5 vezes mais propensos a contribuir com seu potencial de inovação total.


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Ascensão da Filantropia nos Países Ocidentais

Publicado no Le Monde Diplomatique
 
Quando os cidadãos substituem o Estado de bem-estar

Há trinta anos, os governos ocidentais lançam múltiplos artifícios para reduzir gastos. Um deles é terceirizar serviços sociais, encorajando a caridade privada. Canadá, França e Reino Unido seguem esse caminho, mas é nos EUA que o método está mais avançado. Cada vez mais forte, a direita norte-americana fez disso um pilar de sua estratégia política.

por Benoît Bréville*

Pouco antes da eclosão da crise financeira, a cidade de Detroit construiu um grande centro comunitário em um bairro pobre do sudoeste. Concluído em 2008, o edifício permaneceu desesperadoramente vazio: a cidade mergulhou na depressão e fez cortes em programas sociais para todos os lados. Talvez se sentindo um pouco culpados pelas desgraças da capital do automóvel, os dirigentes da Ford, que transferiu muitas fábricas dali, fizeram, em dezembro de 2012, uma doação de US$ 10 milhões para o centro comunitário, que pôde finalmente abrir as portas para distribuir cestas básicas e organizar atividades de lazer para os jovens.
Alguns meses depois, a cidade declarou falência. Para não cortar a aposentadoria de seus funcionários, a prefeitura resolveu leiloar algumas pinturas do Instituto de Arte, incluindo obras de Rembrandt, Henri Matisse e Diego Rivera. No entanto, as fundações Ford, Knight e Kresge, com alguns cidadãos ricos, conseguiram levantar US$ 330 milhões para reforçar o fundo de pensão dos funcionários municipais: assim, a venda foi evitada.
Em outubro de 2013, foi a vez de o governo federal apostar na generosidade privada a fim de garantir missões de interesse público. Diante da incapacidade de democratas e republicanos de chegar a um acordo sobre a elevação do teto da dívida pública, Washington teve de suspender, por dezesseis dias, os serviços públicos “não essenciais”. Com o objetivo de manter em atividade trinta creches geridas pelo Ministério da Saúde, dois bilionários texanos fizeram uma doação de US$ 10 milhões. “Esse dinheiro permitirá que milhares de crianças fiquem em um ambiente seguro e familiar. É uma boa notícia”,1 comemorou a jornalista Eleanor Barkhorn, na revista The Atlantic.
A mobilização de grandes fortunas a serviço de obras sociais não é uma coisa nova nos Estados Unidos. Na virada do século XX, quando o número de milionários aumentava de maneira espetacular – eles eram uma centena em 1870, mais de 4 mil em 1892 e quase 40 mil em 1916 –, surgiu o conceito de filantropia. Para construir uma imagem generosa de si mesmos e legitimar sua opulência aos olhos dos cidadãos, os ricos investiam em causas nobres: construíam bibliotecas, hospitais e universidades, como a Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e Ezra Cornell, em Ithaca; criavam fundações, como o industrial do petróleo John D. Rockefeller e o magnata do aço Andrew Carnegie. Enquanto a caridade tradicional era local e religiosa, dedicando-se a causas pontuais (alívio temporário do sofrimento dos pobres, oferta de aulas de alfabetização etc.), essas fundações visavam ao “bem-estar do gênero humano”, ao “progresso da humanidade”.
Na época, a ideia de que o dinheiro privado pudesse trabalhar pelo bem comum não era óbvia. Do topo do Estado, o presidente republicano Theodore Roosevelt denunciou os “representantes de riqueza predatória” que, “por meio de doações a universidades [...], influenciam em seu próprio interesse os dirigentes de algumas instituições de ensino”.2 Os trabalhadores, por sua vez, olhavam com desconfiança esses industriais tão generosos e altruístas quando se tratava de arte, saúde e ciência, e tão avarentos e brutais em suas fábricas. Resumindo ironicamente a posição do sindicato, o líder da American Federation of Labour (AFL) Samuel Gompers dizia que “a única coisa que o mundo aceitaria de bom grado do sr. Rockefeller é que ele apoiasse a criação de um centro de pesquisa e educação que ajudasse as pessoas a não serem como ele”.3 No início dos anos 1890, quando agressivos locautes multiplicaram-se nas indústrias siderúrgicas da Pensilvânia, muitos trabalhadores recusaram-se a frequentar os estabelecimentos construídos com o dinheiro de Carnegie. Vinte das 46 cidades do estado às quais o industrial propôs apoiar a construção de bibliotecas declinaram da oferta.4
 
O peso da religião

Que município imaginaria hoje recusar o presente de um bilionário? Quando o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, deu um cheque de US$ 100 milhões para as escolas públicas de Newark, o prefeito aproveitou para cobrir, em parte, os cortes orçamentários do governador republicano Chris Christie. A contração das finanças públicas fez a filantropia parecer indispensável,5 e os atos de generosidade já não geram reações sarcásticas. Quando Warren Buffett, Bill Gates e outros quarenta bilionários assumiram o compromisso de doar pelo menos metade de sua fortuna – parte dela adquirida graças a técnicas de otimização que permitem contornar os impostos e, portanto, a redistribuição nacional –, o presidente Barack Obama não mostrou preocupações com a influência da “riqueza predatória”: convidou os dois fundadores da campanha “Promessa de Doação” para visitar a Casa Branca.
Muito midiatizada, a magnanimidade de ricos e empresas é apenas a ponta do iceberg filantrópico. Nos Estados Unidos, existe uma “filantropia de massa”, que mobiliza anualmente dezenas de milhões de cidadãos de todas as condições sociais. Aos domingos na igreja, nas festas escolares, em lojas ou repartições públicas, por telefone ou pela internet, os norte-americanos recebem solicitações constantes. Em 2013, mais de nove em cada dez famílias acederam: elas foram responsáveis por 72% dos US$ 335 bilhões doados no ano (o equivalente a 2% do PIB), enquanto as fundações filantrópicas responderam por 15% e as empresas, por 5%. Estas, aliás, podem agora incorporar seus gastos com a caridade nos custos de marketing, o que revela uma visão extensiva do propósito do negócio, mas também uma visão limitada do abuso do bem social.
Um terço do dinheiro arrecadado todo ano vai para paróquias e grupos religiosos de caridade. O restante chega a organizações comunitárias de bairro, grandes associações nacionais, além de universidades, escolas, hospitais e até think tankse estruturas humanitárias.6 Como não têm fins lucrativos e atuam em áreas como educação, assistência social, cultura e saúde, essas estruturas são consideradas de utilidade pública. Compondo o “terceiro setor”, elas contam com o precioso selo 501(c), que permite isenção de impostos. Em outras palavras, dinheiro público disfarçado de caridade...
O enraizamento da cultura da doação nos Estados Unidos pode ser explicado, em primeiro lugar, pelo peso da religião: mais de 80% das pessoas declaram acreditar em Deus e 40% vão à igreja regularmente. Como outras religiões, o cristianismo dá à caridade um valor central. Ele prega a ajuda mútua e o investimento de todos na “comunidade”.7 Desde o século XIX, a caridade cristã vem acompanhada de certa desconfiança em relação ao Estado, visto como concorrente na ajuda aos pobres. Assim, o Evangelho social, católico e protestante, defende a primazia do local, da iniciativa privada e da proximidade como garantia de eficácia. Pilar do cristianismo social, a encíclica Quadragesimo Anno, do papa Pio IX, assim afirma: “Do mesmo modo que não se pode retirar dos indivíduos, para transferir à comunidade, as atribuições que eles são capazes de cumprir por sua própria iniciativa e por seus próprios meios, também seria cometer uma injustiça, bem como perturbar de maneira muito danosa a ordem social, retirar dos grupos de ordem inferior, para confiar a uma coletividade mais ampla e a um escalão mais elevado, as funções que tais grupos estão em condições de cumprir”.8
Nos Estados Unidos, portanto, o Estado não é considerado o único guardião do interesse geral nem o instrumento mais eficaz para combater os problemas sociais. Aos olhos dos democratas, o Estado e as instituições de caridade são virtuosamente complementares. “Sabemos que as igrejas e instituições de caridade proporcionam uma vantagem real, em comparação com um programa público isolado”, explicou, por exemplo, Obama, em agosto de 2012, na última convenção do Partido Democrata. Já para os republicanos, poderes públicos e caridade privada parecem polos opostos. Fiéis à ortodoxia neoliberal, os conservadores veem o Estado como um monstro burocrático e ineficaz, que favorece o assistencialismo e se opõe às associações locais, próximas dos pobres, portanto capazes de conferir-lhes responsabilidade. “O que fazemos em nossa comunidade é cuidar um do outro. É isso que é tão especial e que o Estado não pode substituir”, maravilhava-se Paul Ryan, candidato republicano à vice-presidência dos Estados Unidos em 2012. Eleita senadora de Iowa em 4 de novembro, Joni Ernst, a nova estrela em ascensão do Partido Republicano, por sua vez, considera que “os norte-americanos podem ser autossuficientes. Eles não precisam depender do Estado para tudo de que precisam ou desejam”.9
A geografia da generosidade norte-americana revela a imbricação entre religião, caridade e neoliberalismo. Os dezessete estados mais generosos (proporcionalmente) do país (Utah, Mississippi, Alabama, Tennessee, Geórgia, Carolina do Sul...) são também os mais religiosos. Todos optaram por Mitt Romney na última eleição presidencial. Ao contrário, os sete estados que estão no fim da lista (Connecticut, Massachusetts, Rhode Island, New Jersey, Vermont, Maine, New Hampshire) escolheram o candidato democrata.
O projeto republicano de colocar todo o peso da assistência social sobre as comunidades locais e a iniciativa privada não é de ontem. Em março de 1929, em seu discurso de posse, o presidente Herbert Hoover destacou a “capacidade de os americanos cooperarem entre si para o bem público”. E anunciou o “desenvolvimento sistemático da cooperação entre o governo federal e a multiplicidade de agências, locais e nacionais, públicas e privadas, que trabalham para melhorar a saúde pública, o lazer, a educação e a casa” dos norte-americanos. A Grande Depressão, iniciada no outubro seguinte, deu-lhe a oportunidade de colocar o programa em execução. Diante do aumento do desemprego, Hoover incentivou a criação de comitês de cidadãos e comissões municipais para coletar doações. O dinheiro foi então distribuído a instituições de caridade que ofereciam sopa aos desempregados, distribuíam carvão, prestavam assistência médica. No entanto, apenas a generosidade privada não conseguia absorver o aumento da demanda, ainda mais com o agravamento da crise diminuindo a capacidade de doação dos cidadãos. O projeto de “governança a custo zero (para o Estado)”, nas palavras do historiador Olivier Zunz, acabou sendo abandonado por Franklin D. Roosevelt em favor do New Deal.
Embora desde Hoover a maioria dos presidentes norte-americanos tenha incentivado o engajamento voluntário dos cidadãos, esse movimento acelerou-se nas últimas três décadas, em um contexto de desengajamento do Estado. Em 1981, por meio de contratos, Ronald Reagan delegou diversos serviços sociais a organizações sem fins lucrativos, cujo número aumentou em 40% durante sua presidência.10 Então foi a vez de George H. Bush, que, em 1988, em seu discurso de posse para os delegados de seu partido, celebrou a sociedade civil norte-americana e seus “mil pontos de luz, as organizações comunitárias que se espalham como estrelas por toda a nação”. Ele também aumentou os contratos com o terceiro setor e incentivou o voluntariado, comprometendo-se com cidadãos e associações merecedores do prêmio “Pontos de Luz”. Quanto a Bill Clinton e George W. Bush, o primeiro fez uma reforma da assistência social com o objetivo de abrir uma “nova era de cooperação com a sociedade civil” (segundo seu então vice-presidente, Al Gore), e o segundo não cansou de apresentar-se como “conservador caritativo”, incitando os norte-americanos a doar à comunidade.
 
Chuva de doações às universidades de elite

Ao contrário da imagem que seus promotores gostariam de lhe dar, o terceiro setor não é fruto apenas do engajamento espontâneo dos cidadãos. Ele também é produto de uma estratégia concertada de sucessivos governos para se desincumbir de serviços sociais com menor custo: além de contratarem trabalhadores precários, as entidades comunitárias e caritativas contam com milhões de voluntários cujo trabalho gratuito representa uma economia anual de muitas dezenas de bilhões de dólares.11 Hoje, o Estado norte-americano é o principal cliente (por meio de contratos) e o principal patrocinador (por meio de subsídios) de cerca de 1 milhão de entidades sem fins lucrativos, religiosas ou não, que atuam no campo social. As doações privadas representam apenas 10% a 15% de seu orçamento. Em parte custeadas pela sociedade por meio de deduções fiscais, em 2011 elas impediram que US$ 53,7 bilhões chegassem ao Tesouro norte-americano.12
No entanto, às vezes a solidariedade local pode ter efeitos perversos. Um caso em Woodside, Califórnia: entre 1998 e 2003, a única escola primária dessa abastada cidade recebeu US$ 10 milhões vindos de pais, vizinhos, ex-alunos etc. Graças às doações, as quinhentas crianças atendidas pelo estabelecimento puderam ter aulas de música, arte e informática. A 15 quilômetros dali, as escolas do distrito de Ravenswood não conseguiram doação nenhuma: com rendimentos quatro vezes menores que os das famílias de Woodside, as de Ravenswood não puderam oferecer aulas de violino a seus filhos... Esse mesmo problema atinge o ensino superior: em 2013, 1% das universidades – as mais elitistas (Stanford, Harvard, Columbia, Yale etc.) – ficou com 17% das doações.13 O problema também atinge o sistema de apoio religioso: as paróquias dos bairros ricos têm mais recursos que as dos bairros pobres e menos necessidades a suprir.14 As deduções fiscais propostas pelo Estado alimentam esse sistema gerador de desigualdade.
São, porém, a felicidade de empresas especializadas na coleta de doações. As grandes fundações recorrem a elas para aguçar a generosidade dos norte-americanos. Essas empresas, que pagam um exército de angariadores por telefone e porta a porta, às vezes são responsáveis pela captação de uma parcela significativa do dinheiro arrecadado. Entre 2007 e 2010, a empresa InfoCision, por exemplo, trabalhou para três dezenas de organizações de caridade, como a American Heart Association, a American Diabetes Association e a Cancer Society. Dos US$ 424,5 milhões coletados no período, US$ 220,6 milhões ficaram em seu bolso, o equivalente a 52%. Os angariadores costumam não revelar esse percentual às pessoas a quem pedem doações. Eles chegam mesmo a dizer – com o aval das entidades envolvidas e sob o risco de infringir a lei – que 70% das doações vão diretamente para a causa defendida.15
Nas associações de bairro, que não têm condições de terceirizar a angariação de fundos por meio de empresas especializadas, são os funcionários que se encarregam disso, dedicando parte significativa de seu tempo de trabalho a essa tarefa. São eles que dirigem pedidos aos usuários; coordenam rifas, bingos e jantares beneficentes; organizam bazares cuja renda é revertida para a associação etc. Em intervalos regulares, alguns se dedicam inteiramente a preencher relatórios de pedidos de subvenções e a responder a editais.
Sempre prontos a praguejar contra a má gestão do Estado de bem-estar, os promotores da ação caridosa denunciam as falhas do terceiro setor com os mesmos argumentos (excesso de custos de estrutura, rendimento insuficiente do pessoal...). Assim, há quem queira aplicar ali os métodos de gestão que fizeram o sucesso do setor privado. O empresário Charles Bronfman, presidente da fundação que leva seu nome, considera que, “para ter uma influência durável e significativa, a filantropia deve ser gerida como uma empresa – com disciplina, estratégia e de olho no resultado”. “As instituições de caridade que recebem seu apoio devem prestar contas a você, assim como o conselho administrativo de uma empresa diante de seus acionistas”, explicou aos leitores do The Wall Street Journal.16 Em suma, os mecenas se transformam em acionistas; as pessoas assistidas, em consumidores de serviços.
Nos últimos anos também surgiram empresas de consultoria especializadas no terceiro setor. Para orientar a seleção de doadores, a Bridgespan Group, a Rockefeller Philanthropy Advisors, a Philanthropic Initiative, a Charity Navitors, a GuideStar e a Jumo pesquisam, avaliam e classificam as instituições caridosas, da maior à menor, em função de objetivos específicos, transformando voluntários e assistentes sociais em prestadores de serviços.
Ninguém, no entanto, avalia os avaliadores. O setor de caridade representa um maná considerável; ele escapa ao controle democrático. Apelidado de “comissário escolar não eleito” pela ex-ministra da Educação Diane Ravitch, Bill Gates lidera duas fundações (Gates Foundation e Gates Trust), cujos ativos chegam a mais de US$ 65 bilhões. Ele pode escolher livremente entre investir seus fundos em causas humanitárias, em sua ex-universidade, nas associações de sua cidade natal ou na pesquisa médica. Nada o obriga a se preocupar com o bem comum ou qualquer imperativo de redistribuição. Se essas duas fundações fossem um Estado, seria o septuagésimo PIB do mundo, à frente de Mianmar, do Uruguai e da Bulgária. E seu presidente não teria sido eleito por ninguém.
 
Canadá, Reino Unido e França

A questão dos déficits públicos, que agita o debate ocidental desde a década de 1980, levou os Estados a experimentar soluções para aliviar a “carga” do bem-estar social sem danos catastróficos para a população. Assim, a exemplo dos Estados Unidos, o Canadá apostou na “sociedade civil” e na ajuda comunitária. No início dos anos 1990, o déficit do país aproximava-se de 6% do PIB, e a proporção da dívida chegou a 90%. Não demorou muito para que as agências de classificação de risco retirassem seu triplo A, em 1992.
Assim que tomou posse, em 1993, o governo liberal de Jean Chrétien iniciou uma política de austeridade drástica, que resultou na redução de 20% do número de funcionários públicos e em significativos cortes nos serviços sociais. Mas um item orçamentário continuou aumentando: o apoio às organizações comunitárias. Enquanto o número de funcionários cai, o de voluntários e trabalhadores comunitários – com salários mais baixos e menos proteção trabalhista – sobe. A ministra do Emprego quebequense, Louise Harel, explica que os Estados devem “efetuar uma transformação no modo de prestar serviços e benefícios”. Ela propõe para isso dar “ao arranjo comunitário-Estado toda a sua importância”.1
Teria essa ideia inspirado o primeiro-ministro britânico, David Cameron, quando lançou, em 2010, o programa Big Society? Elogiada pela revista Timecomo “uma formidável tentativa de libertar o espírito empreendedor”, a política inglesa visa incentivar o voluntariado e a ação do setor comunitário. Um serviço cívico nacional permite que jovens de 16 e 17 anos – ganhando 50 libras – participem por três semanas das atividades de uma associação de sua escolha. Uma “rede da grande sociedade”, financiada principalmente com as receitas da loteria nacional, que deve “gerar, desenvolver e levar adiante novas ideias para ajudar as pessoas a se reunirem em seus bairros para fazer o bem”.2
Entre as joias dos conservadores britânicos, encontramos os Social Impact Bonds, cuja ilustração mais emblemática está na prisão de Peterborough: quinze “mecenas” investiram, por meio de organizações comunitárias, 5 milhões de libras na reabilitação de ex-detentos desse estabelecimento penitenciário. Se em 2016 a taxa de reincidência não ultrapassar 7,5%, o Estado reembolsará o investimento, acrescido de um bônus, pela economia pública realizada graças à redução da reincidência.3
Na França, o setor associativo vive quase exclusivamente de subvenções públicas, receitas tiradas de cotizações e da venda de serviços. Apesar de ter crescido rapidamente, a prática da doação continua pouco difundida: o dinheiro enviado a associações e fundações mal passou de 4 bilhões de euros em 2013, o que representa 0,2% do PIB (contra 2% nos Estados Unidos). Com a lei de 2003 que permite aos indivíduos deduzir dois terços de suas doações e às empresas restituir 60%, o ambiente fiscal tornou-se bastante favorável aos filantropos. Mas os franceses continuam preferindo a ideia da redistribuição social pelo Estado. E os bilionários preferem consagrar parte de sua fortuna a fundações de arte contemporânea. (BB)


1 Citado por Marcel Sevigny, “Le mouvement communautaire et la récupération étatique” [O movimento comunitário e a recuperação do Estado], Possibles, Montreal, v.27, n.3, 2003.
2 “Smaller government: bigger society?” [Governo menor: sociedade maior?], sessão 2010-12. Disponível em: www.publications.parliament.uk.
3 Brinda Ganguly, “The success of Peterborough Social Impact Bond” [O sucesso do Social Impact Bond de Peterborough], 8 ago. 2014. Disponível em: www.rockefellerfoundation.org.

* Benoît Bréville é Jornalista e integra a redação do Le Monde Diplomatique França.

1  Eleanor Barkhorn, “Head start will stay open in shutdown, thanks to hedge-fund money” [Programa Head Start vai funcionar durante suspensão dos serviços públicos, graças a dinheiro de hedge-fund], The Atlantic, Boston, 7 out. 2013.
2  Citado por Olivier Zunz, La philanthropie en Amérique. Argent privé, affaires d’État [A filantropia na América. Dinheiro privado, negócios de Estado], Fayard, Paris, 2012.
3  Citado por Peter Dobkin Hall, “Inventing the nonprofit sector” and other essays on philanthropy, voluntarism and nonprofit organizations [“Inventando o setor sem fins lucrativos” e outros ensaios sobre filantropia, voluntariado e organizações sem fins lucrativos], The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1992.
4  Paul Krause, The Battle for Homestead, 1880-1892: politics, culture and steel[A Batalha de Homestead, 1880-1892: política, cultura e aço], Pittsburgh University Press, 1992.
5 Ler Frédéric Lordon, “Invasion de la charité privée” [Invasão da caridade privada], Le Monde Diplomatique, abr. 2006.
6  “The annual report on philanthropy for the year 2013” [Relatório anual sobre filantropia de 2013], Giving USA, 2014.
7  Nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, o termo “comunidade” (community) não tem a conotação étnica ou religiosa que tem na França. Ele designa uma entidade ao mesmo tempo social e espacial, definida em torno de necessidades e objetivos comuns.
8  Pio IX, Encyclique Quadragesimo Anno (15 mai 1931) [Encíclica Quadragesimo Anno (15 maio 1931)], Spes, Paris, 1936.
9  Elias Isquith, “Iowa’s Tea Party disaster: Joni Ernst’s shocking ideas about the welfare state” [O desastre do Tea Party de Iowa: as chocantes ideias de Joni Ernst sobre o Estado de bem-estar], 17 out. 2014. Disponível em: www.salon.com.
10 “The nonprofit world: a statistical portrait” [O mundo sem fins lucrativos: um retrato estatístico], Chronicle of Philanthropy, Washington, jan. 1990.
11 Cf. “Volunteering in the United States 2013” [Voluntariado nos Estados Unidos em 2013], Bureau of Labor Statistics, 25 fev. 2014.
12 Robert Reich, “What are foundations for?” [Para que servem as fundações?], Boston Review, 1o mar. 2013.
13 “Colleges and universities raise $33,80 billion in 2013” [Faculdades e universidades arrecadaram US$ 33,8 bilhões em 2013], Council for Aid to Education, Nova York, 12 fev. 2014.
14 J. Clif Christopher, Rich church, poor church. Keys to effective financial ministry [Igreja pobre, igreja rica. Chaves para um ministério financeiro efetivo], Abington Press, 2012.
15 Alex Nabaum, “Duping the donor” [Enganando o doador], Bloomberg Markets, Nova York, out. 2012.
16 “Should philanthropies operate like businesses?” [Entidades filantrópicas devem operar como empresas?], The Wall Street Journal, Nova York, 28 nov. 2011.
01 de Dezembro de 2014

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A Responsabilidade Social e Ambiental das Transnacionais

Publicado no Le Monde Diplomatique





Crimes (econômicos) sem castigo

Ao deslocarem sua produção para os países mais pobres, as transnacionais não procuram apenas mão de obra barata. A fragilidade das leis sociais e ambientais as protege das perseguições judiciais. Essa impunidade prospera também em razão da falta de instâncias internacionais e de tribunais competentes nesses assuntos.

por Aurélien Bernier*




Nos dias 29 de maio e 1o de junho de 2014, a cidade de Montreal acolheu a primeira sessão canadense do Tribunal Permanente dos Povos (TPP) relativa à indústria da mineração. Durante um processo fictício, militantes e personalidades da sociedade civil “julgaram” grandes empresas acusadas de violar os direitos humanos e destruir o meio ambiente. Esse procedimento ao mesmo tempo teatral e sério visa não apenas evidenciar os danos ligados à extração de matérias-primas, mas também denunciar a impunidade que beneficia as transnacionais instaladas nos países pobres.
Em direito internacional, a noção de crime econômico contra os povos ou contra o meio ambiente não existe. A “comunidade internacional” não é desprovida de instrumentos jurídicos, tais como a Corte Internacional de Justiça ou a Corte Penal Internacional, mas ambas não se aplicam às atividades econômicas que as empresas desenvolvem no exterior. As marés negras, os acidentes industriais e a corrupção de funcionários locais não merecem, ao que parece, uma jurisdição competente. Ou melhor, os países ocidentais não consideram judicioso dotar seus tribunais de meios para julgar as ações de suas transnacionais no exterior: seria uma forma de violação da soberania nacional dos países que acolhem as ditas empresas.
A lei francesa, por exemplo, determina que um crime ou um delito cometido fora do território será julgado na França se, e somente se, “o crime ou o delito for punido ao mesmo tempo pela lei francesa e pela lei estrangeira, e se foi constatado por uma decisão definitiva da jurisdição estrangeira”. Em suma, para que os dirigentes da Total sejam sancionados na França por seu apoio à junta militar da Birmânia, é preciso que eles tenham sido previamente condenados, pelos mesmos fatos, pelo tribunal de Naypyidaw, a capital da... Birmânia. Tal perspectiva, até agora, não tirou o sono dos “criadores de riqueza” franceses, e com razão: graças à chantagem de se mudarem para outro lugar e aos meios gigantescos de que dispõem as transnacionais, uma condenação em um país tão pobre e corrompido se revela na maioria das vezes algo utópico.
“As empresas deveriam respeitar os direitos humanos”
No entanto, as ONGs ainda esperam encontrar uma falha nesse sistema de impunidade. É o caso da Sherpa, uma associação de juristas fundada em 2001 em Paris, da Povos Solidários e do coletivo Ética na Etiqueta. Essas três entidades deram queixa contra a rede Auchan no caso do desmoronamento da fábrica têxtil de Rana Plaza, em 24 de abril de 2013, em Bangladesh.1 “A Auchan inscreve sua ação nos princípios do direito vindos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, da declaração relativa aos princípios e direitos fundamentais da OIT [Organização Internacional do Trabalho], de 1998, e dos princípios diretores da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico]”, explica a empresa em seu site. “Esses textos formam um corpus de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais que a Auchan aplica a seus parceiros.” Será que os 1.135 mortos do Rana Plaza concordariam com essa análise? Etiquetas da In Extenso, uma marca da Auchan, foram encontradas nas ruínas da confecção, mas o grupo se recusou a indenizar as vítimas, contestando qualquer ligação direta ou indireta com o estabelecimento. Alegando “prática comercial enganosa”, as ONGs conseguiram obter a abertura de uma investigação preliminar. Para Gérard Mulliez, fundador do grupo Auchan e terceira maior fortuna da França, as algemas ainda estão distantes, mas, ainda assim, trata-se de uma advertência.
No seio das Nações Unidas, alguns Estados tentam modificar o direito internacional. Em junho de 2014, o Conselho dos Direitos do Homem examinou um projeto de resolução apresentado pelo Equador e pela África do Sul, a respeito da responsabilidade social e ambiental das transnacionais. O texto propunha a criação de um grupo de trabalho encarregado de elaborar um “instrumento internacional de regras jurídicas para regulamentar, dentro do direito internacional dos direitos humanos, as atividades de empresas transnacionais e outras empresas”. Submetida ao voto, essa resolução foi adotada a despeito da oposição das nações mais ricas: o conjunto de países da União Europeia, o Japão e os Estados Unidos se manifestaram contra. “A França preferiu uma abordagem progressiva, que se baseia nos trabalhos iniciados em 2011, de maneira a poder aplicar concretamente essas medidas mais rapidamente”, tentou justificar Annick Girardin, secretária de Estado encarregada do Desenvolvimento e da Francofonia.2 Se os grandes patrões do CAC 40 (as quarenta maiores empresas francesas cotadas na Bolsa) tivessem desfilado no banco dos réus, os poderes públicos apoiariam os queixosos?
A via “mais concreta e rápida” desejada pelo governo se chama “princípios diretores das Nações Unidas relativos às empresas e aos direitos humanos”. Redigidos em estreito acordo com as empresas privadas, eles são não reguladores e completamente inofensivos. O 11o princípio indica inclusive que “as empresas deveriam respeitar os direitos humanos”, um condicional que diz muito sobre a motivação política dos redatores.
Empurrando esses ataques contra a impunidade das transnacionais para a responsabilidade da ONU, François Hollande, Manuel Valls e suas equipes devem também responder aos ataques internos. Em novembro de 2013, deputados ecologistas e socialistas apresentaram um projeto de lei relativo ao “dever de vigilância das empresas-mãe e das empresas que dão ordens”. O texto, que está demorando a ser examinado, introduziria um dever de prevenção de danos ecológicos e ataques aos direitos fundamentais, assim como um regime de responsabilidade das empresas-mãe francesas. Será que um dia ele será votado? É pouco provável. O Movimento das Empresas da França (Medef) já se opõe com vigor, assim como o Ministério da Economia. Ao que parece, o assunto será encaminhado para o nível europeu, do qual se conhece a grande firmeza – para não dizer crueldade – em relação aos lobbies econômicos...

Ilustração: Reuters/Lunae Panacho
* Aurélien Bernier (1974) é um escritor e ativista francês, especializado em políticas ambientais e militante da corrente de desglobalização. Entre suas obras, se encontra Les OGM en guerre contre la societé (Paris, Attac/Mille et Une Nuits, 2005) e co-autor de Transgénial! (Paris, Attac/Mille et Une Nuits, 2006).

1 Ler Olivier Cyran, “Au Bangladesh, les meurtriers du prêt-à-porter” [Em Bangladesh, os assassinos do prêt-à-porter], Le Monde Diplomatique, jun. 2013.
2 Assembleia Nacional, sessão de quarta-feira, 9 de julho de 2014, questões ao governo.









6 de janeiro de 2015

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Virunga (2014)

Virunga é um documentário de 2014 dirigido por Orlando von Einsiedel. O filme retrata o trabalho de conservação dos guardas florestais dentro do Parque Nacional de Virunga, na República Democrática do Congo, e a atividade de uma empresa petroleira britânica, Soco International, que começou a explorar petróleo no parque, Patrimônio Mundial da UNESCO, em Abril de 2014. O documentário conta a história de quatro personagens que lutam para proteger o Virunga (que abriga os últimos gorilas da montanha do mundo) da guerra, da caça ilegal, e da ameaça de exploração do petróleo. Seguindo o cuidador de gorilas André Bauma, o chefe da guarda florestal do parque Rodrigue Mugaruka Katembo, o Diretor Chefe do parque Emmanuel de Merode, e a jornalista investigativa francesa, Mélanie Gouby, o filme concentra-se na beleza natural e na biodiversidade do Virunga, bem como nas complexas questões políticas e econômicas que envolvem a exploração de petróleo e os conflitos armados na região. O filme ganhou vários prêmios, incluindo o prêmio do Doxa Documentary Festival, em Vancouver, no Canadá; o Prêmio Internacional ou Emerging Filmmaker no Hot Docs, em Toronto; o Documentary Award Golden Rock no Little Rock Film Festival. O filme também foi indicado para Melhor Documentário no Festival de Cinema de Tribeca.
Duração: 1 hora e 35 minutos.
Elenco:
André Bauma, Rodrigue Mugaruka Katembo, Emmanuel de Merode Mélanie Gouby.


sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Boechat: relativismo ou ambiguidade moral


Recentemente, o jornalista brasileiro Ricardo Boechat foi criticado como sendo um relativista moral pelo blog Ceticismo Político. A crítica tem como alvo as afirmações do jornalista em seu programa matinal do dia 17 de novembro, quando o jornalista passa a criticar o sentimento de vergonha manifestado publicamente pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tal como transcrito a seguir:

“O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso veio a público para dizer que sentia vergonha do que estava acontecendo na Petrobras. Eu queria fazer a seguinte observação: Acho que ele [Fernando Henrique Cardoso] está sendo oportunista quando começa a sentir vergonha com a roubalheira ocorrida na gestão alheia. É o tipo de vergonha que tem memória controlada pelo tempo. A partir de um certo tempo para trás ou para frente você começa a sentir vergonha, porque o presidente Fernando Henrique Cardoso é um homem suficientemente experiente e bem informado para saber que na Petrobras se roubou também durante o seu governo. ‘Ah, mas não pegaram ninguém!” Ora presidente! Dá um desconto porque só falta o senhor achar que na gestão do Sarney não teve gente roubando na Petrobras.”

Como vemos, o jornalista realiza uma crítica à crítica manifesta publicamente pelo ex-presidente. Neste sentido, ele desqualifica a indignação de Cardoso, por ser ilegítima. Isto porque o sentimento de vergonha do ex-presidente, segundo o jornalista, se volta apenas para os fatos recentes, pois ele “tem memória controlada pelo tempo”. Trata-se de uma atitude “oportunista”, ele sentiria vergonha apenas pela “roubalheira ocorrida na gestão alheia.”

Ao realizar essa crítica da crítica, o jornalista (de forma intuitiva) estaria invocando um argumento lógico conhecido como contradição performativa, ou seja, o sujeito A não poderia ser contrário a uma ação que ele mesmo performa. No presente caso, o ex-presidente não poderia se indignar com atos de corrupção que supostamente teriam ocorrido também em seu mandato (1995-2002). Isto seria uma flagrante contradição.

Mas essa crítica de Boechat se constituiria como relativismo moral? O que é mesmo relativismo moral?

O conceito de relativismo moral pode assumir muitas formas, mas iremos resumi-lo da seguinte maneira aqui: para o relativismo moral, os valores morais não podem ser estabelecidos de forma absoluta ou universal, mas dependem do círculo e do momento em que são produzidos. Cada cultura, em cada diferente momento histórico definiria seus próprios valores morais. No limite, esse argumento levaria a um niilismo ou ceticismo moral, pois não seria possível discutir o que é de fato certo ou errado no campo moral.

Essa discussão pode se tornar mais rica, se nos deslocarmos para o âmbito da moral da ambiguidade. Simone de Beauvoir, por exemplo, fala de uma ambiguidade inerente a existência humana: o ser humano é, ao mesmo tempo, livre e determinado, podendo ser, ora, sujeito ou objeto de ações morais, opressor ou oprimido. A autora francesa defende a riqueza inerente a essa ambiguidade sempre fundamentada na singularidade, criticando uma suposta necessidade de se manter submisso a regras sempre predeterminadas. Nas palavras da filósofa:


“Para dizer a verdade, não somos jamais autorizados, em princípio, a adotar alguma conduta, uma das consequências concretas da moral existencialista, é a recusa de todas as justificações prévias que se poderiam tirar das civilizações, da idade, da cultura – é a recusa de qualquer princípio de autoridade.” (BEAUVOIR, Simone de. Moral da ambiguidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.)

A moral como tradição moral deveria ser descartada, pois é empobrecedora. Em lugar dela, para cada caso, onde um ser humano singular está implicado, uma nova solução inédita também deveria ser pensada, sem prerrogativas externas. Trata-se, portanto, de uma moral individual, fundada no ser humano como ser histórico.

Nessa perspectiva, o defensor de uma moral da ambiguidade diria que o sentimento de vergonha do ex-presidente seria justificável, pois ocorreria em momento presente, temporalmente distante dos fatos ocorridos em seu próprio governo. A corrupção do passado teria acontecido num outro contexto, outras cifras, outros projetos e riscos para a sociedade estariam em questão.

O jornalista, ao contrário, seria insensível a isso e, por esta razão, critica o ex-presidente. Neste sentido, ao invés do que se afirma sobre Boechat, ele deve sim, no presente caso, ser chamado de um universalista moral, i.e., aquele que acredita na existência de valores morais universais. Em vez disso, os autores do blog utilizam argumentos relativistas para acusar o jornalista de relativismo moral:

“1- Existindo corrupção, existem as mesmas provas que para os casos atuais? (ex. delações, entregas de evidências)

2-Mesmo tendo existindo corrupção, ela chegou na mesma escala endêmica que no caso atual? (ex. dimensão de envolvidos, valores)

3-Mesmo tendo existido algo neste nível, a corrupção chegou a ser o projeto de um partido, ao invés de casos isolados?”

Sem entrar no mérito de supostos entraves na investigação ocorridos durante o governo do ex-presidente (por exemplo, através da atuação do Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro, primo do vice-presidente à época, Marco Maciel, que dos 626 inquéritos criminais que recebeu, somente aceitou 60 denúncias), os argumentos dos blogueiros relativiza o conceito de corrupção: é preciso que existam as mesmas provas, é preciso que seja endêmica e é preciso que seja um projeto de partido. Caso esses três requisitos não sejam preenchidos, as ações do passado não podem ser classificadas como corrupção e, portanto, não podem deslegitimar o sentimento de vergonha do ex-presidente Fernando Henrique. Fazendo isso, não se dão conta de que estão utilizando argumentos relativistas. Parafraseando Heráclito: a mesma corrupção não pode atravessar duas vezes a mesma empresa, porque na segunda vez não é nem a mesma corrupção, nem a mesma empresa.

Obviamente, os dois contextos precisam ser melhor estudados e comparados: o que era a corrupção no governo Fernando Henrique e o que é a corrupção nos governos PT? Está seria a pergunta central de um excelente projeto de pesquisa.

Por outro lado, é preciso estar sempre alerta à ambiguidade moral defendida pelos blogueiros, pois ela sempre pode assumir as feições que bem conhecemos no Brasil, lembrando aqui da célebre frase atribuída a Artur Bernardes: “Aos amigos tudo; aos inimigos os rigores da lei.”
  

Fernando Rodrigues - Compra de votos para a emenda da reeleição.