Quando os cidadãos substituem o Estado de bem-estar
Há trinta anos, os governos ocidentais lançam múltiplos artifícios para
reduzir gastos. Um deles é terceirizar serviços sociais, encorajando a
caridade privada. Canadá, França e Reino Unido seguem esse caminho, mas é
nos EUA que o método está mais avançado. Cada vez mais forte, a direita
norte-americana fez disso um pilar de sua estratégia política.
por Benoît Bréville*
Pouco antes da eclosão da crise financeira, a cidade de Detroit
construiu um grande centro comunitário em um bairro pobre do sudoeste.
Concluído em 2008, o edifício permaneceu desesperadoramente vazio: a
cidade mergulhou na depressão e fez cortes em programas sociais para
todos os lados. Talvez se sentindo um pouco culpados pelas desgraças da
capital do automóvel, os dirigentes da Ford, que transferiu muitas
fábricas dali, fizeram, em dezembro de 2012, uma doação de US$ 10
milhões para o centro comunitário, que pôde finalmente abrir as portas
para distribuir cestas básicas e organizar atividades de lazer para os
jovens.
Alguns meses depois, a cidade declarou falência. Para não cortar a
aposentadoria de seus funcionários, a prefeitura resolveu leiloar
algumas pinturas do Instituto de Arte, incluindo obras de Rembrandt,
Henri Matisse e Diego Rivera. No entanto, as fundações Ford, Knight e
Kresge, com alguns cidadãos ricos, conseguiram levantar US$ 330 milhões
para reforçar o fundo de pensão dos funcionários municipais: assim, a
venda foi evitada.
Em outubro de 2013, foi a vez de o governo federal apostar na
generosidade privada a fim de garantir missões de interesse público.
Diante da incapacidade de democratas e republicanos de chegar a um
acordo sobre a elevação do teto da dívida pública, Washington teve de
suspender, por dezesseis dias, os serviços públicos “não essenciais”.
Com o objetivo de manter em atividade trinta creches geridas pelo
Ministério da Saúde, dois bilionários texanos fizeram uma doação de US$
10 milhões. “Esse dinheiro permitirá que milhares de crianças fiquem em
um ambiente seguro e familiar. É uma boa notícia”,1 comemorou a jornalista Eleanor Barkhorn, na revista The Atlantic.
A mobilização de grandes fortunas a serviço de obras sociais não é uma
coisa nova nos Estados Unidos. Na virada do século XX, quando o número
de milionários aumentava de maneira espetacular – eles eram uma centena
em 1870, mais de 4 mil em 1892 e quase 40 mil em 1916 –, surgiu o
conceito de filantropia. Para construir uma imagem generosa de si mesmos
e legitimar sua opulência aos olhos dos cidadãos, os ricos investiam em
causas nobres: construíam bibliotecas, hospitais e universidades, como a
Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e Ezra Cornell, em Ithaca;
criavam fundações, como o industrial do petróleo John D. Rockefeller e o
magnata do aço Andrew Carnegie. Enquanto a caridade tradicional era
local e religiosa, dedicando-se a causas pontuais (alívio temporário do
sofrimento dos pobres, oferta de aulas de alfabetização etc.), essas
fundações visavam ao “bem-estar do gênero humano”, ao “progresso da
humanidade”.
Na época, a ideia de que o dinheiro privado pudesse trabalhar pelo bem
comum não era óbvia. Do topo do Estado, o presidente republicano
Theodore Roosevelt denunciou os “representantes de riqueza predatória”
que, “por meio de doações a universidades [...], influenciam em seu
próprio interesse os dirigentes de algumas instituições de ensino”.2
Os trabalhadores, por sua vez, olhavam com desconfiança esses
industriais tão generosos e altruístas quando se tratava de arte, saúde e
ciência, e tão avarentos e brutais em suas fábricas. Resumindo
ironicamente a posição do sindicato, o líder da American Federation of
Labour (AFL) Samuel Gompers dizia que “a única coisa que o mundo
aceitaria de bom grado do sr. Rockefeller é que ele apoiasse a criação
de um centro de pesquisa e educação que ajudasse as pessoas a não serem
como ele”.3 No início dos anos 1890, quando agressivos
locautes multiplicaram-se nas indústrias siderúrgicas da Pensilvânia,
muitos trabalhadores recusaram-se a frequentar os estabelecimentos
construídos com o dinheiro de Carnegie. Vinte das 46 cidades do estado
às quais o industrial propôs apoiar a construção de bibliotecas
declinaram da oferta.4
O peso da religião
Que município imaginaria hoje recusar o presente de um bilionário?
Quando o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, deu um cheque de US$ 100
milhões para as escolas públicas de Newark, o prefeito aproveitou para
cobrir, em parte, os cortes orçamentários do governador republicano
Chris Christie. A contração das finanças públicas fez a filantropia
parecer indispensável,5 e os atos de generosidade já não
geram reações sarcásticas. Quando Warren Buffett, Bill Gates e outros
quarenta bilionários assumiram o compromisso de doar pelo menos metade
de sua fortuna – parte dela adquirida graças a técnicas de otimização
que permitem contornar os impostos e, portanto, a redistribuição
nacional –, o presidente Barack Obama não mostrou preocupações com a
influência da “riqueza predatória”: convidou os dois fundadores da
campanha “Promessa de Doação” para visitar a Casa Branca.
Muito midiatizada, a magnanimidade de ricos e empresas é apenas a ponta
do iceberg filantrópico. Nos Estados Unidos, existe uma “filantropia de
massa”, que mobiliza anualmente dezenas de milhões de cidadãos de todas
as condições sociais. Aos domingos na igreja, nas festas escolares, em
lojas ou repartições públicas, por telefone ou pela internet, os
norte-americanos recebem solicitações constantes. Em 2013, mais de nove
em cada dez famílias acederam: elas foram responsáveis por 72% dos US$
335 bilhões doados no ano (o equivalente a 2% do PIB), enquanto as
fundações filantrópicas responderam por 15% e as empresas, por 5%.
Estas, aliás, podem agora incorporar seus gastos com a caridade nos
custos de marketing, o que revela uma visão extensiva do propósito do
negócio, mas também uma visão limitada do abuso do bem social.
Um terço do dinheiro arrecadado todo ano vai para paróquias e grupos
religiosos de caridade. O restante chega a organizações comunitárias de
bairro, grandes associações nacionais, além de universidades, escolas,
hospitais e até think tankse estruturas humanitárias.6
Como não têm fins lucrativos e atuam em áreas como educação,
assistência social, cultura e saúde, essas estruturas são consideradas
de utilidade pública. Compondo o “terceiro setor”, elas contam com o
precioso selo 501(c), que permite isenção de impostos. Em outras
palavras, dinheiro público disfarçado de caridade...
O enraizamento da cultura da doação nos Estados Unidos pode ser
explicado, em primeiro lugar, pelo peso da religião: mais de 80% das
pessoas declaram acreditar em Deus e 40% vão à igreja regularmente. Como
outras religiões, o cristianismo dá à caridade um valor central. Ele
prega a ajuda mútua e o investimento de todos na “comunidade”.7
Desde o século XIX, a caridade cristã vem acompanhada de certa
desconfiança em relação ao Estado, visto como concorrente na ajuda aos
pobres. Assim, o Evangelho social, católico e protestante, defende a
primazia do local, da iniciativa privada e da proximidade como garantia
de eficácia. Pilar do cristianismo social, a encíclica Quadragesimo Anno,
do papa Pio IX, assim afirma: “Do mesmo modo que não se pode retirar
dos indivíduos, para transferir à comunidade, as atribuições que eles
são capazes de cumprir por sua própria iniciativa e por seus próprios
meios, também seria cometer uma injustiça, bem como perturbar de maneira
muito danosa a ordem social, retirar dos grupos de ordem inferior, para
confiar a uma coletividade mais ampla e a um escalão mais elevado, as
funções que tais grupos estão em condições de cumprir”.8
Nos Estados Unidos, portanto, o Estado não é considerado o único
guardião do interesse geral nem o instrumento mais eficaz para combater
os problemas sociais. Aos olhos dos democratas, o Estado e as
instituições de caridade são virtuosamente complementares. “Sabemos que
as igrejas e instituições de caridade proporcionam uma vantagem real, em
comparação com um programa público isolado”, explicou, por exemplo,
Obama, em agosto de 2012, na última convenção do Partido Democrata. Já
para os republicanos, poderes públicos e caridade privada parecem polos
opostos. Fiéis à ortodoxia neoliberal, os conservadores veem o Estado
como um monstro burocrático e ineficaz, que favorece o assistencialismo e
se opõe às associações locais, próximas dos pobres, portanto capazes de
conferir-lhes responsabilidade. “O que fazemos em nossa comunidade é
cuidar um do outro. É isso que é tão especial e que o Estado não pode
substituir”, maravilhava-se Paul Ryan, candidato republicano à
vice-presidência dos Estados Unidos em 2012. Eleita senadora de Iowa em 4
de novembro, Joni Ernst, a nova estrela em ascensão do Partido
Republicano, por sua vez, considera que “os norte-americanos podem ser
autossuficientes. Eles não precisam depender do Estado para tudo de que
precisam ou desejam”.9
A geografia da generosidade norte-americana revela a imbricação entre
religião, caridade e neoliberalismo. Os dezessete estados mais generosos
(proporcionalmente) do país (Utah, Mississippi, Alabama, Tennessee,
Geórgia, Carolina do Sul...) são também os mais religiosos. Todos
optaram por Mitt Romney na última eleição presidencial. Ao contrário, os
sete estados que estão no fim da lista (Connecticut, Massachusetts,
Rhode Island, New Jersey, Vermont, Maine, New Hampshire) escolheram o
candidato democrata.
O projeto republicano de colocar todo o peso da assistência social
sobre as comunidades locais e a iniciativa privada não é de ontem. Em
março de 1929, em seu discurso de posse, o presidente Herbert Hoover
destacou a “capacidade de os americanos cooperarem entre si para o bem
público”. E anunciou o “desenvolvimento sistemático da cooperação entre o
governo federal e a multiplicidade de agências, locais e nacionais,
públicas e privadas, que trabalham para melhorar a saúde pública, o
lazer, a educação e a casa” dos norte-americanos. A Grande Depressão,
iniciada no outubro seguinte, deu-lhe a oportunidade de colocar o
programa em execução. Diante do aumento do desemprego, Hoover incentivou
a criação de comitês de cidadãos e comissões municipais para coletar
doações. O dinheiro foi então distribuído a instituições de caridade que
ofereciam sopa aos desempregados, distribuíam carvão, prestavam
assistência médica. No entanto, apenas a generosidade privada não
conseguia absorver o aumento da demanda, ainda mais com o agravamento da
crise diminuindo a capacidade de doação dos cidadãos. O projeto de
“governança a custo zero (para o Estado)”, nas palavras do historiador
Olivier Zunz, acabou sendo abandonado por Franklin D. Roosevelt em favor
do New Deal.
Embora desde Hoover a maioria dos presidentes norte-americanos tenha
incentivado o engajamento voluntário dos cidadãos, esse movimento
acelerou-se nas últimas três décadas, em um contexto de desengajamento
do Estado. Em 1981, por meio de contratos, Ronald Reagan delegou
diversos serviços sociais a organizações sem fins lucrativos, cujo
número aumentou em 40% durante sua presidência.10 Então foi a
vez de George H. Bush, que, em 1988, em seu discurso de posse para os
delegados de seu partido, celebrou a sociedade civil norte-americana e
seus “mil pontos de luz, as organizações comunitárias que se espalham
como estrelas por toda a nação”. Ele também aumentou os contratos com o
terceiro setor e incentivou o voluntariado, comprometendo-se com
cidadãos e associações merecedores do prêmio “Pontos de Luz”. Quanto a
Bill Clinton e George W. Bush, o primeiro fez uma reforma da assistência
social com o objetivo de abrir uma “nova era de cooperação com a
sociedade civil” (segundo seu então vice-presidente, Al Gore), e o
segundo não cansou de apresentar-se como “conservador caritativo”,
incitando os norte-americanos a doar à comunidade.
Chuva de doações às universidades de elite
Ao contrário da imagem que seus promotores gostariam de lhe dar, o
terceiro setor não é fruto apenas do engajamento espontâneo dos
cidadãos. Ele também é produto de uma estratégia concertada de
sucessivos governos para se desincumbir de serviços sociais com menor
custo: além de contratarem trabalhadores precários, as entidades
comunitárias e caritativas contam com milhões de voluntários cujo
trabalho gratuito representa uma economia anual de muitas dezenas de
bilhões de dólares.11 Hoje, o Estado norte-americano é o
principal cliente (por meio de contratos) e o principal patrocinador
(por meio de subsídios) de cerca de 1 milhão de entidades sem fins
lucrativos, religiosas ou não, que atuam no campo social. As doações
privadas representam apenas 10% a 15% de seu orçamento. Em parte
custeadas pela sociedade por meio de deduções fiscais, em 2011 elas
impediram que US$ 53,7 bilhões chegassem ao Tesouro norte-americano.12
No entanto, às vezes a solidariedade local pode ter efeitos perversos.
Um caso em Woodside, Califórnia: entre 1998 e 2003, a única escola
primária dessa abastada cidade recebeu US$ 10 milhões vindos de pais,
vizinhos, ex-alunos etc. Graças às doações, as quinhentas crianças
atendidas pelo estabelecimento puderam ter aulas de música, arte e
informática. A 15 quilômetros dali, as escolas do distrito de Ravenswood
não conseguiram doação nenhuma: com rendimentos quatro vezes menores
que os das famílias de Woodside, as de Ravenswood não puderam oferecer
aulas de violino a seus filhos... Esse mesmo problema atinge o ensino
superior: em 2013, 1% das universidades – as mais elitistas (Stanford,
Harvard, Columbia, Yale etc.) – ficou com 17% das doações.13 O
problema também atinge o sistema de apoio religioso: as paróquias dos
bairros ricos têm mais recursos que as dos bairros pobres e menos
necessidades a suprir.14 As deduções fiscais propostas pelo Estado alimentam esse sistema gerador de desigualdade.
São, porém, a felicidade de empresas especializadas na coleta de
doações. As grandes fundações recorrem a elas para aguçar a generosidade
dos norte-americanos. Essas empresas, que pagam um exército de
angariadores por telefone e porta a porta, às vezes são responsáveis
pela captação de uma parcela significativa do dinheiro arrecadado. Entre
2007 e 2010, a empresa InfoCision, por exemplo, trabalhou para três
dezenas de organizações de caridade, como a American Heart Association, a
American Diabetes Association e a Cancer Society. Dos US$ 424,5 milhões
coletados no período, US$ 220,6 milhões ficaram em seu bolso, o
equivalente a 52%. Os angariadores costumam não revelar esse percentual
às pessoas a quem pedem doações. Eles chegam mesmo a dizer – com o aval
das entidades envolvidas e sob o risco de infringir a lei – que 70% das
doações vão diretamente para a causa defendida.15
Nas associações de bairro, que não têm condições de terceirizar a
angariação de fundos por meio de empresas especializadas, são os
funcionários que se encarregam disso, dedicando parte significativa de
seu tempo de trabalho a essa tarefa. São eles que dirigem pedidos aos
usuários; coordenam rifas, bingos e jantares beneficentes; organizam
bazares cuja renda é revertida para a associação etc. Em intervalos
regulares, alguns se dedicam inteiramente a preencher relatórios de
pedidos de subvenções e a responder a editais.
Sempre prontos a praguejar contra a má gestão do Estado de bem-estar,
os promotores da ação caridosa denunciam as falhas do terceiro setor com
os mesmos argumentos (excesso de custos de estrutura, rendimento
insuficiente do pessoal...). Assim, há quem queira aplicar ali os
métodos de gestão que fizeram o sucesso do setor privado. O empresário
Charles Bronfman, presidente da fundação que leva seu nome, considera
que, “para ter uma influência durável e significativa, a filantropia
deve ser gerida como uma empresa – com disciplina, estratégia e de olho
no resultado”. “As instituições de caridade que recebem seu apoio devem
prestar contas a você, assim como o conselho administrativo de uma
empresa diante de seus acionistas”, explicou aos leitores do The Wall Street Journal.16 Em suma, os mecenas se transformam em acionistas; as pessoas assistidas, em consumidores de serviços.
Nos últimos anos também surgiram empresas de consultoria especializadas
no terceiro setor. Para orientar a seleção de doadores, a Bridgespan
Group, a Rockefeller Philanthropy Advisors, a Philanthropic Initiative, a
Charity Navitors, a GuideStar e a Jumo pesquisam, avaliam e classificam
as instituições caridosas, da maior à menor, em função de objetivos
específicos, transformando voluntários e assistentes sociais em
prestadores de serviços.
Ninguém, no entanto, avalia os avaliadores. O setor de caridade
representa um maná considerável; ele escapa ao controle democrático.
Apelidado de “comissário escolar não eleito” pela ex-ministra da
Educação Diane Ravitch, Bill Gates lidera duas fundações (Gates
Foundation e Gates Trust), cujos ativos chegam a mais de US$ 65 bilhões.
Ele pode escolher livremente entre investir seus fundos em causas
humanitárias, em sua ex-universidade, nas associações de sua cidade
natal ou na pesquisa médica. Nada o obriga a se preocupar com o bem
comum ou qualquer imperativo de redistribuição. Se essas duas fundações
fossem um Estado, seria o septuagésimo PIB do mundo, à frente de
Mianmar, do Uruguai e da Bulgária. E seu presidente não teria sido
eleito por ninguém.
Canadá, Reino Unido e França
A questão dos déficits públicos, que agita o debate ocidental desde a década de 1980, levou os Estados a experimentar soluções para aliviar a “carga” do bem-estar social sem danos catastróficos para a população. Assim, a exemplo dos Estados Unidos, o Canadá apostou na “sociedade civil” e na ajuda comunitária. No início dos anos 1990, o déficit do país aproximava-se de 6% do PIB, e a proporção da dívida chegou a 90%. Não demorou muito para que as agências de classificação de risco retirassem seu triplo A, em 1992.
Assim que tomou posse, em 1993, o governo liberal de Jean Chrétien
iniciou uma política de austeridade drástica, que resultou na redução de
20% do número de funcionários públicos e em significativos cortes nos
serviços sociais. Mas um item orçamentário continuou aumentando: o apoio
às organizações comunitárias. Enquanto o número de funcionários cai, o
de voluntários e trabalhadores comunitários – com salários mais baixos e
menos proteção trabalhista – sobe. A ministra do Emprego quebequense,
Louise Harel, explica que os Estados devem “efetuar uma transformação no
modo de prestar serviços e benefícios”. Ela propõe para isso dar “ao
arranjo comunitário-Estado toda a sua importância”.1
Teria essa ideia inspirado o primeiro-ministro britânico, David
Cameron, quando lançou, em 2010, o programa Big Society? Elogiada pela
revista Timecomo “uma formidável tentativa de libertar o
espírito empreendedor”, a política inglesa visa incentivar o
voluntariado e a ação do setor comunitário. Um serviço cívico nacional
permite que jovens de 16 e 17 anos – ganhando 50 libras – participem por
três semanas das atividades de uma associação de sua escolha. Uma “rede
da grande sociedade”, financiada principalmente com as receitas da
loteria nacional, que deve “gerar, desenvolver e levar adiante novas
ideias para ajudar as pessoas a se reunirem em seus bairros para fazer o
bem”.2
Entre as joias dos conservadores britânicos, encontramos os Social
Impact Bonds, cuja ilustração mais emblemática está na prisão de
Peterborough: quinze “mecenas” investiram, por meio de organizações
comunitárias, 5 milhões de libras na reabilitação de ex-detentos desse
estabelecimento penitenciário. Se em 2016 a taxa de reincidência não
ultrapassar 7,5%, o Estado reembolsará o investimento, acrescido de um
bônus, pela economia pública realizada graças à redução da reincidência.3
Na França, o setor associativo vive quase exclusivamente de subvenções
públicas, receitas tiradas de cotizações e da venda de serviços. Apesar
de ter crescido rapidamente, a prática da doação continua pouco
difundida: o dinheiro enviado a associações e fundações mal passou de 4
bilhões de euros em 2013, o que representa 0,2% do PIB (contra 2% nos
Estados Unidos). Com a lei de 2003 que permite aos indivíduos deduzir
dois terços de suas doações e às empresas restituir 60%, o ambiente
fiscal tornou-se bastante favorável aos filantropos. Mas os franceses
continuam preferindo a ideia da redistribuição social pelo Estado. E os
bilionários preferem consagrar parte de sua fortuna a fundações de arte
contemporânea. (BB)
1 Citado por Marcel Sevigny, “Le mouvement communautaire et la récupération étatique” [O movimento comunitário e a recuperação do Estado], Possibles, Montreal, v.27, n.3, 2003.
2 “Smaller government: bigger society?” [Governo menor: sociedade
maior?], sessão 2010-12. Disponível em: www.publications.parliament.uk.
3 Brinda Ganguly, “The success of Peterborough Social Impact Bond”
[O sucesso do Social Impact Bond de Peterborough], 8 ago. 2014.
Disponível em: www.rockefellerfoundation.org.
* Benoît Bréville é Jornalista e integra a redação do Le Monde Diplomatique França.
1 Eleanor Barkhorn, “Head start will stay open in shutdown, thanks to
hedge-fund money” [Programa Head Start vai funcionar durante suspensão
dos serviços públicos, graças a dinheiro de hedge-fund], The Atlantic, Boston, 7 out. 2013.
2 Citado por Olivier Zunz, La philanthropie en Amérique. Argent privé, affaires d’État [A filantropia na América. Dinheiro privado, negócios de Estado], Fayard, Paris, 2012. 3 Citado por Peter Dobkin Hall, “Inventing the nonprofit sector” and other essays on philanthropy, voluntarism and nonprofit organizations [“Inventando o setor sem fins lucrativos” e outros ensaios sobre filantropia, voluntariado e organizações sem fins lucrativos], The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1992. 4 Paul Krause, The Battle for Homestead, 1880-1892: politics, culture and steel[A Batalha de Homestead, 1880-1892: política, cultura e aço], Pittsburgh University Press, 1992. 5 Ler Frédéric Lordon, “Invasion de la charité privée” [Invasão da caridade privada], Le Monde Diplomatique, abr. 2006. 6 “The annual report on philanthropy for the year 2013” [Relatório anual sobre filantropia de 2013], Giving USA, 2014. 7 Nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, o termo “comunidade” (community) não tem a conotação étnica ou religiosa que tem na França. Ele designa uma entidade ao mesmo tempo social e espacial, definida em torno de necessidades e objetivos comuns. 8 Pio IX, Encyclique Quadragesimo Anno (15 mai 1931) [Encíclica Quadragesimo Anno (15 maio 1931)], Spes, Paris, 1936. 9 Elias Isquith, “Iowa’s Tea Party disaster: Joni Ernst’s shocking ideas about the welfare state” [O desastre do Tea Party de Iowa: as chocantes ideias de Joni Ernst sobre o Estado de bem-estar], 17 out. 2014. Disponível em: www.salon.com. 10 “The nonprofit world: a statistical portrait” [O mundo sem fins lucrativos: um retrato estatístico], Chronicle of Philanthropy, Washington, jan. 1990. 11 Cf. “Volunteering in the United States 2013” [Voluntariado nos Estados Unidos em 2013], Bureau of Labor Statistics, 25 fev. 2014. 12 Robert Reich, “What are foundations for?” [Para que servem as fundações?], Boston Review, 1o mar. 2013. 13 “Colleges and universities raise $33,80 billion in 2013” [Faculdades e universidades arrecadaram US$ 33,8 bilhões em 2013], Council for Aid to Education, Nova York, 12 fev. 2014. 14 J. Clif Christopher, Rich church, poor church. Keys to effective financial ministry [Igreja pobre, igreja rica. Chaves para um ministério financeiro efetivo], Abington Press, 2012. 15 Alex Nabaum, “Duping the donor” [Enganando o doador], Bloomberg Markets, Nova York, out. 2012. 16 “Should philanthropies operate like businesses?” [Entidades filantrópicas devem operar como empresas?], The Wall Street Journal, Nova York, 28 nov. 2011. |
01 de Dezembro de 2014 |
Nenhum comentário:
Postar um comentário