quarta-feira, 7 de junho de 2017

Um carro chamado Direitos Humanos


Por Jorge Moraes

No Rio de Janeiro, em 2008, uma viatura da Polícia Militar perseguia um Fiat Stilo preto pelas ruas da Tijuca. Na mesma rua, uma advogada, voltando para casa com seus filhos num Fiat Palio Weekend cinza chumbo, sai do caminho dos bandidos e encosta seu carro para não se envolver na perseguição. Estranhamente a polícia para a viatura a poucos metros do Fiat da advogada, enquanto os bandidos fugiam livremente. Saem os dois policiais do veículo e disparam 27 tiros contra o carro errado. A mulher desesperada joga uma mochila com fraudas pela janela para que os policiais pudessem perceber que havia crianças no carro. Mas já era tarde demais, o mais velho, de três anos, após ser alvejado, foi levado para o hospital, não resistindo aos ferimentos, morreu no dia seguinte.

Na investigação, os policiais alegaram que os tiros foram disparados pelos bandidos, mas um vídeo de uma câmera de segurança desmentiu a versão da polícia. Os policiais de fato alvejaram o carro, matando o jovem passageiro.

O que aconteceu naquele dia não é algo incomum. Infelizmente ocorre com frequência no Rio de Janeiro. Em geral a polícia atira primeiro para averiguar depois. A grande maioria das vezes, contra jovens negros, de origem humilde, que habitam favelas. Mas, como de costume, a situação apenas chama a atenção quando atinge uma advogada em um bairro de classe média do Rio de Janeiro.

Isso fica claro quando observamos um outro exemplo mais recente, ocorrido em 2015. Um adolescente em uma comunidade de Honório Gurgel é abordado a tiros por policiais e acaba filmando sua própria morte com seu celular. Em defesa os policiais, que não perceberam a filmagem, plantam duas armas para recorrer ao auto de resistência. A importância de melhor avaliar essa prática se dá pelo crescimento vertiginoso de autos de resistência - 96,7% em relação a março de 2016. Destaca-se que caso não fosse a filmagem do celular, além de assassinado, o jovem também seria incriminado, aumentando essa infame estatistica.

Ao comparar as duas histórias, vemos um importante ponto em comum. Trata-se de uma disposição fatal da polícia carioca para, primeiro atirar, e depois averiguar. Obviamente as condições de treinamento, preparo e remuneração da polícia devem ter alguma influência nesses episódios. Mas gostaria de enfatizar não o papel da polícia, ou dos policiais, e sim o da opinião pública que, involuntariamente, acaba apoiando ambas as práticas. Ela frequentemente identifica os Direitos Humanos com o direito de bandidos, ou como um entrave para a atuação da polícia.

Diante das duas histórias, o público em geral não identifica a atuação da polícia no episódio da Tijuca como sendo um caso de violação de Direitos Humanos; mas identifica, de forma pejorativa, no segundo caso e identificaria ainda mais se o celular do jovem não estivesse gravando a ação da policial. No primeiro caso, segundo a opinião geral, seria um erro odioso da polícia despreparada. No segundo, uma mera exceção, um dano colateral da ação policial, pois a força policial deve continuar podendo agir de forma truculenta contra os marginais e que se danem os direitos humanos - afinal, se foi atingido tem alguma relação com a marginalidade. Nesse caso, o rito de prisão, acusação, julgamento e condenação deve mesmo poder ser comprimido em um único ato de execução sumária. Caso contrário a vida nas cidades seria insustentável com a criminalidade. Para essa reflexão distorcida, o cidadão médio tem Direitos e o cidadão jovem, negro, pobre e em contato com o crime teria Direitos Humanos, os quais precisam ser urgentemente revogados, em nome da ordem e do convívio pacífico em sociedade.

Vários erros estão contidos nessa reflexão distorcida, mas gostaria de destacar o mais gritante. Antes de mais nada, o movimento pelos Direitos Humanos não se reduz à defesa dos direitos de presos e suspeitos. É lícito dizer que "hoje a maior parte das organizações que advogam pelos direitos humanos estão preocupadas primordialmente com outras questões, como o racismo, a exclusão social, o trabalho infantil, a educação, o acesso à terra ou à moradia, o direito à saúde, a questão da desigualdade de gênero etc."

Mas além disso e acima de tudo é preciso destacar que a luta por direitos humanos diz respeito a qualquer ser humano, pelo simples fato de ser humano, tal como, essas duas histórias podem ilustrar. Elas servem para dizer que Direitos Humanos são como Fiats pretos com insulfilme. Qualquer um que esteja lá dentro faz jus a ele: branco, negro, bandido ou cidadão. Esses direitos servem para proteger as pessoas da arbitrariedade de serem sumariamente julgadas, condenadas e executadas por qualquer um que se julgue capaz de decidir sobre a vida de um ser humano sem nenhum constrangimento. Aqueles policiais inclusive poderiam estar diante do veículo correto, mas como eles poderiam saber se ali não estariam reféns inocentes juntos com os marginais?





 
Vídeo da câmera de segurança flagrando a ação dos policiais na Tijuca 


Fontes:

1 O Globo
2 Carta Capital
3 DHNET

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